Compuseram-me



Algum dia do ano, em pleno século XXI e em algum lugar do Planeta Terra.

Querido vovô,

Já se passam mais de 16 anos que neste mundo eu surgi. Creio que o senhor nem deve saber sobre a minha existência e muito menos por tudo o que eu vivi. Por anos a fio eu ouvia as minhas amigas comentarem sobre o feriado na casa dos seus nonos e sem nenhuma noção, permanecia quieta e se não, lhes contava tudo o que havia aprontado com a vovó materna. Instintivamente pediam-me desculpas por algo que eu não pudera ter a mínima consciência, obviamente nós não podemos sentir falta ou saudades daquilo que nunca tivemos. Certa vez, recordo-me até hoje, uma mulher no ônibus sentou-se ao meu lado, juntamente com a minha mãe. Ela nem ao menos me conhecia e de fato, mamãe e eu a achávamos ligeiramente esquisita. Fez-me diversas perguntas e dentre estas, uma era sobre você, para a nossa surpresa. Lembro-me que fiquei impressionada com tudo o que dizia, eram coisas que jamais ouvira. Falava-me que você estava no Céu, num lugar muito distante e que um dia iria voltar para cá, enquanto isso aguardava refletindo-se como uma estrela a brilhar grandemente. Seria imprudente citar que para uma menina com a vida a aflorar recentemente, tais coisas não soaram do mais estúpido modo. Os anos passaram-se e muitas coisas ocorreram, devo admitir que certamente esteja feliz por ti. Neste mundo vejo sangue a derramar, crianças com açoite apanhar, milhões por fome morrer e pergunto-me se será mesmo que alguma solução nós iremos ter.
Voltando ao tema central... Tempo demais se passou desde que por aquele acidente você nos disse adeus. Era tarde para querer renunciar o que o destino prometera, mas por que tivemos que pagar os estúpidos erros cometidos pelos transgressores de leis? Acredito que é muito pedir-lhes para respeitar as normas impostas para a sociedade a fim de se viver bem. Às vezes eu observo crianças com os seus vovôs e eu fico a imaginar se nós seriamos iguais. Devo ser realista e não idealizar alguém que jamais pudera eu conhecer, entretanto quem disse que conseguimos imaginar sem depositar nos sonhos as nossas ilusões? Fatos ocorreram, o mundo está bem mais distinto, diria até que você não o reconheceria. O tempo é a prova mais verídica de que as órbitas giram e ora por tal fato tornar-se-ão inconstantes. Ainda penso em qual companhia eu irei usar para essa carta chegar ao seu destinatário, provavelmente nem precisarei de uma, pois “as palavras têm vida, e ganham o sentimento de quem as escreve”. Logo, estou gerando uma nova vida, que poderá desenvolver-se e criando independência, voar pelos ares, e voando alto algum dia possa lhe alcançar. Escrevo-lhe não somente para contar que estamos bem, mas também que por desentendimentos passamos e embora isso não lhe possa fazer bem, eu necessito de uma força para lutar e continuar. Sinto que a minha bateria já está acabando e o meu carregador ficou perdido pela estrada. Se achá-lo entregue para a Avenida da Veia Cava, Rua Átrio Direito e Número: Coração Único, necessitando de mais informações, peça para o impulso nervoso enviar ao cérebro o seu pedido, se lho negar diga que é urgente e lhe cause adrenalina, com certeza, fazendo isso, nada se passará de rápidos segundos menores que as batidas do órgão principal. Não sei como acabar, sinto que quando isso eu fizer, possa perder o que me resta, terei medo, como ser forte agora? Contar até determinado número e em seguida despedir-me será pior, sou horrível em dizer adeus. Fechar os olhos e escrever a primeira palavra que à mente passar-me parece soar melhor, depois diga o que achas. Se tais coisas eu fizer, piorar-se-á. Meus dedos insistem em aqui permanecerem. O meu espírito está dividido em meio a tantas opções. Farei uma singela ida a menos que prometa responder-me, assim ninguém se machucará e nem de receio sofrerá. Não me deixe perdida num Universo assim, eu preciso de você mais do que os quase 6000 dias por mim jazidos. O receio de ser como uma árvore sem frutos me abate diariamente, quando as minhas energias despedem-se de mim e vão fazer moradas num longínquo lugar. Os motivos dir-lhe-ei numa outra aurora resplandecente.

Com o meu maior amor,
Sua eterna neta (a garota das roupas roxas).

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