Relato dum tortuoso sábado

O seu pai passa a cada cinco minutos para lhe acordar, com os olhos vagando pelas altas quatro paredes de seu quarto ela diz o que se parece mais com um silencioso murmúrio: “Já vou, um minuto”. Não obstante, ele novamente vem e diz se a sua irresponsabilidade será tamanha para chegar atrasada ao teste de inglês. Com cara de quem não conseguiu dormir e vestígios ainda de uma forte gripe, ela diz que não, que agirá como o figurino demanda e não medirá esforços para seguir as regras do mais perfeito modo. Se o seu corpo obedecesse, seria bem mais fácil.
O carro passa rapidamente pelas avenidas, ela ainda está comendo o seu café-da-manhã, como sempre. Chega à escola com um pedaço grande de pão com manteiga num guardanapo. Todos a olham com ligeira estranheza, entretanto, era mais do que um hábito particular seu andar com a refeição, já que demora demasiadamente para comer.
Percebera que chegara longos 20 minutos adiantada, logo resolve conversar com uma garota da turma, que como ela estava em prontidão. Aos poucos o corredor vai se enchendo com pessoas ansiosas para fechar também o semestre. De repente a “teacher” sai da sala e sem enganos olha para a garota, que supostamente foi uma das primeiras a chegar, perguntou-lhe o porquê dela não chamar os outros para entrar e fazer logo a prova.
Sem entender muita coisa, ela entra juntamente com várias pessoas que juntara para ficar na passagem, obviamente não sabia que podia ter se livrado daquilo antes.
Os pensamentos a invadiam num súbito turbilhão de reviravoltas e ondas gigantes, que por ora a destruía. Conseguia tudo, menos se concentrar.
Acabou a avaliação e esperou a correção impaciente lendo um livro de cabeceira sobre o jornalismo. Não, não o conseguia lê-lo. Uma ou duas páginas no máximo. Depois descobriu que ainda havia a reescrita da redação, que estupidamente ficou ruim.
Foi relativamente bem em ambas avaliações, isso era um pequeno alívio. Só que esse conforto não representava nada perto da sua gigante agonia. O rosto do professor que ela mais admirava não saia de sua mente, uma cara de frustração e decepção com o seu resultado, mediante todos os acontecimentos. Não era só isso que a inquietava. Os segundos demoravam como nunca para passar, a cada batida do relógio, era como uma facada em seu coração.
O seu fracasso a cada passo a deixava jogada ao chão. As pessoas começaram a brigar com ela, não sabiam que as palavras tinham tamanho efeito para os seus pobres ouvidos. Atordoada chegou ao ponto de ônibus, ligou o seu dispositivo na maior altura e quis esquecer-se do mundo, viajar para as notas musicais. Sem conseguir de maneira alguma, pegou novamente o seu livro e desafiou as letras para entendê-las. Felizmente o seu condutor chegou rapidamente. Ao entrar ela sentiu receio, um forte pressentimento, algo que atinge o corpo como uma flecha. Pensou logicamente que não se passara de um mau súbito ou ainda a gripe que a dominara, mas não era.
O ônibus estava quase vazio, havia poucas almas vagando por ele. Sentou-se num lugar com claridade e pensou em todos que compuseram o seu dia. A angústia dominou-lhe, a conversa com a amiga causou-lhe tristeza e a música (trilha sonora do último filme que vira) não ajudou muito. Fechou os olhos e tentou imaginar que estava tudo bem. Buscou consolo na imagem externa. Não, definitivamente não pudera confortar-se diante crianças pedindo dinheiro, adultos deitados na calçada sem roupas num dia frio, motoristas xingando uns aos outros e idosos sem ajuda para atravessar a rua. Ficou novamente absorta em pensamentos, devaneios e permitiu que a melodia a guiasse.
Ao cair duramente na realidade, viu o seu ponto passando, tentou apertar o botão, mas não conseguira. Sentou-se com fado. Esperou a próxima parada com alívio e percebeu que era impossível descer num lugar com o crime reinando. O motorista e o cobrador brigaram com ela por simplesmente não sair, mesmo que passageiros entraram e seria tolo reclamar de apertar somente um botão. Vira que enfrentá-los seria a mais pura tolice. Proferiu um sutil “desculpas”.
Desceu no próximo ponto, já bem distante da sua casa e viu que tudo era bem mais diferente. Não foi nem perto do que se perder no shopping com a sua mãe ou sumir no Castelo Rá-Tim-Bum e ficar chorando com as guias. Ela estava sozinha e o seu único companheiro era o medo. Ligou para os pais, mas seria melhor achar o seu caminho só. Estava na Praça da Sé, a alguns passos da 25 de Março e estranhos passavam desesperadamente, logo a fumaça de milhares de “churrasquinhos de gato” invadiram a sua visão. Não havia motivos para a preocupação, ela estava praticamente no coração da sua cidade e a conhecia muito bem. Entretanto, é bem mais fácil encarar usuários de drogas passando pela sua frente, assaltantes e bêbados quando se está acompanhada.
Agarrou firmemente a sua bolsa, voltou os seus olhos para frente e o seu andar compassado tornou-se rápido. Tentava esquecer-se das brigas que tivera, dos desastres e de tudo. Conseguira entrar naquele que a levaria para o seu lar. Ficou tensa, há um longo tempo tem certo trauma quanto aos cobradores e motoristas de ônibus. Todavia, tinha um ar aconchegante, os passageiros pareciam ser-lhes conhecidos. Sentiu-se bem, pode respirar. Tudo se passou rápido, o alívio enorme lhe subiu a mente. Parou e finalmente disse adeus àquela confusão e seguiu em frente, a caminho da sua família, o seu porto seguro.
As inúmeras lembranças daquele cálido sábado e o maior medo sentido em sua vida, jamais apagar-se-ão em suas memórias,

a garota das roupas roxas.

Comentários

Carol Mendes disse…
Moça que relato incrível!
Bela descrição... Quando vc escreve é possível visualizar os ambientes onde as histórias acontecem, o semblante das personagens, a cena inteirinha!

Muito bom...

E... tem dias que a gnt chega a pensar que nem deveria ter levantado da cama! rs.

Mas é assim mesmo! As lembranças são eternas... Se ficam, permanecem em nós é pq têm grande importância: sejam elas boas ou ruins, nos marcaram profundamente!

Bjinhos. ;)
Kah. Milloti disse…
amiga, só lhe peço uma coisa. Escreva um livro. Me sentir tão bem lendo o seu texto, da mesma forma que me sinto quando leio Stephenie Meyer. Adorei. Parabéns.
Beijoos